O arcabouço fiscal de Lula virou uma ficção cômoda
- Neriel Lopez
- há 6 dias
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Na obra "O Sentido de um Fim", o crítico literário britânico Frank Kermode (1919-2010) recorre ao filósofo alemão Hans Vaihinger (1852-1933) para explicar os motivos de certas narrativas resistirem ao tempo.
Para Kermode, as ficções literárias se encaixam na categoria cunhada pelo germânico de “o conscientemente falso”. As narrativas não precisam ser verdadeiras, nem refutáveis como uma hipótese científica, se seguirem funcionando até perderem a eficácia.
A meta fiscal brasileira opera sob a mesma lógica. A retirada de R$ 9,5 bilhões do plano de contingência da gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prova: o novo arcabouço fiscal virou uma ficção deliberada, uma construção na qual ninguém acredita de fato, mas que todos fingem respeitar enquanto for útil para manter algum verniz de responsabilidade.
No Brasil, a meta fiscal virou conceito filosófico. Vale para uns gastos, não vale para outros. E quando não cabe no teto, cria-se a janela de exceção. Um levantamento do IFI (Instituto Fiscal Independente) mostra que, entre 2023 e 2025, R$ 324,3 bilhões foram retirados da conta oficial do equilíbrio das contas públicas.
Este cálculo, vale dizer, não computa a nova resposta à incursão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ao Brasil à regra.
O valor é equivalente a quase um ano inteiro de Bolsa Família, mas invisível no cálculo do resultado primário.
O caso mais emblemático foi a PEC da Transição: R$ 145 bilhões liberados em 2023 para bancar programas sociais.
Depois vêm os precatórios, um passivo que remonta à gestão de Jair Bolsonaro (PL), com a PEC dos Precatórios de resultados insistentes. Em 2023, foram R$ 92,4 bilhões pagos fora da meta. Para 2025, já está acertado outro alívio contábil: mais R$ 45,3 bilhões fora do radar fiscal.
No ano passado, o governo federal destinou R$ 29 bilhões para reconstruir o Rio Grande do Sul em 2024 após as enchentes — recursos necessários, mas igualmente apartados da meta. O mesmo vale para o R$ 1,4 bilhão no combate a queimadas e incêndios em 2024.
Se queimadas e inundações podem até ser, em uma análise que ignore inúmeras variáveis, inevitáveis, o pagador de impostos vai arcar duas vezes com os R$ 6,5 bilhões tungados do INSS em fraudes contra aposentados e pensionistas, já que o governo pediu ao STF (Supremo Tribunal Federal) para não contabilizar o ressarcimento dos desvios no esforço fiscal.
Paira, desde a desmoralização do teto de gastos, a seguinte questão: meta fiscal há, mas um cardápio de exceções mina a credibilidade da âncora.
O resultado primário é menos um compromisso e mais uma peça de ficção contábil, que espreme a capacidade do governo em endividar-se e oferecer, cada vez mais, prêmios de risco que sufocam mais as contas públicas.
No ano que vem, a relação entre a dívida pública e o PIB (Produto Interno Bruto), deve ultrapassar os 80% em 2026, conforme projeções do próprio Tesouro Nacional.
O arcabouço fiscal de Lula tornou-se um paradoxo literário: uma narrativa que não se sustenta, mas que cumpre seu papel enquanto houver quem acredite — ou finja acreditar. O risco, seja na economia ou na literatura, é o mesmo: quando, mesmo para o mais incauto dos leitores, a narrativa deixa de ser minimamente factível.
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