O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), e o procurador-geral da República, Augusto Aras, divergiram sobre enquadrar como “terroristas” os responsáveis pela invasão e depredação das sedes do Executivo, Legislativo e Judiciário no dia 8 de janeiro, em Brasília. Enquanto o magistrado trata abertamente as pessoas presas no episódio como “criminosos terroristas”, o chefe do Ministério Público Federal não utilizou, nas denúncias até aqui apresentadas contra os investigados, o enquadramento na Lei Antiterrorismo.
Ao transformar em preventiva a prisão de centenas de detidos em flagrante após a invasão à Praça dos Três Poderes, Moraes disse vislumbrar o cometimento de atos que ferem em quatro pontos a Lei 13.260 de 2016, entre estes “realizar atos preparatórios de terrorismo com o propósito inequívoco de consumar tal delito”.
A chamada Lei Antiterrorismo foi sancionada pela então presidente Dilma Rousseff em 2016, em meio à pressão internacional pelo estabelecimento de uma legislação específica para coibir atentados nos Jogos Olímpicos daquele ano, preocupação que era crescente após ataques promovidos pelo Estado Islâmico na Europa no ano anterior. À época, Dilma foi criticada por sindicatos e grupos da sociedade civil que viam na nova lei um instrumento para sufocar manifestações populares.
As críticas levaram à alteração do texto original durante sua tramitação, fazendo com que manifestações de cunho político, ideológico ou social fossem retiradas da lista de atos que poderiam ser enquadrados na lei. Restaram na redação os crimes praticados “por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”.
Ao apresentar as primeiras denúncias contra os envolvidos nos episódios de vandalismo, a Procuradoria-Geral da República (PGR) deixou de fora qualquer menção a terrorismo. Alegou que não foi possível identificar nos atos as razões delimitadas no texto da lei. As denúncias foram assinadas pelo subprocurador-geral da República Carlos Frederico Santos, indicado por Aras para coordenar o Grupo Estratégico de Combate aos Atos Antidemocráticos.
Para a PGR, os golpistas presos em Brasília praticaram crimes de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça com emprego de substância inflamável contra o patrimônio da União e com considerável prejuízo para a vítima e deterioração de patrimônio tombado.
A divergência não é apenas entre Aras e Moraes, e diferentes interpretações estão em debate no meio jurídico. O ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello tem entendimento similar ao da PGR, destacando que também não viu nos episódios de 8 de janeiro a “finalidade de provocar terror social ou generalizado”, como descrito na Lei Antiterrorismo:
— Não chegamos a esse ponto. Tivemos uma marcha de populares que se transformou em depredação de prédios públicos, não um ato visando a assustar a população de uma ou outra forma de modo generalizado. Não vejo como terrorismo.
O professor de Processo Penal da Universidade de São Paulo (USP) Gustavo Badaró explica que o juiz de um caso pode alterar a tipificação penal prevista na denúncia apresentada pelo Ministério Público. Mas afirma que o próprio STF tem como regra geral divergir da acusação apenas no momento da sentença, e não de imediato já no recebimento da denúncia.
— Em casos excepcionais, o juiz pode alterar a tipificação logo no início do processo, desde que os fatos que baseiam essa interpretação sejam os mesmos contidos na denúncia. As consequências práticas de ser ou não terrorismo, nesse caso, não são significativas porque todos os demais crimes citados na denúncia estão na mesma categoria, dos crimes inafiançáveis. É mais uma questão política que jurídica, porque a palavra “terrorismo” tem um peso diferente — avalia.
Badaró diz entender que a ausência das motivações descritas na lei de 2016 impede o enquadramento dos atos como terrorismo. No entanto, para o criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, os ataques devem, sim, ser considerados atos terroristas.
— A tipificação como terrorista é absolutamente pertinente ao caso, pois é o sentido que o regramento internacional dá ao terrorismo. Os atos tentaram subverter a ordem e fazer uma ruptura institucional. Mas para efeito de criminalização dentro do Brasil, a Lei Antiterrorismo é muito restrita e talvez não se aplique para esses atos. Mas isso não quer dizer que não tenham sido terroristas — diz o advogado.
Chegaram ao Congresso nos últimos anos propostas para alterar a redação da lei sancionada por Dilma. O ex-presidente Jair Bolsonaro chamou de “louvável” um desses projetos, apresentado pelo senador Lasier Martins (Podemos-RS) e que pretendia recrudescer a legislação, trazendo de volta trechos vetados pela petista. “[...] Ações como incendiar e explodir bens públicos ou privados devem ser tipificadas como terrorismo”, tuitou o agora ex-presidente em janeiro de 2019. A proposição foi arquivada pelo Senado no fim do ano passado.
A promotora Celeste Leite dos Santos, do Ministério Público de São Paulo, ajudou a formular outra proposta para modificar a Lei Antiterrorismo. O projeto, que está na Câmara, busca desvincular o ato terrorista de sua motivação, como ocorre no texto em vigor.
— Há indícios suficientes de que houve terrorismo em Brasília, mas a lei é falha. Ainda assim, é possível enquadrar os envolvidos nos atos na Lei Antiterrorismo. Muitos manifestantes usavam camisetas com frases que faziam referências a mensagens nazistas. Com isso, eles estavam fazendo discriminação e expressando preconceito de raça, como se fossem superiores aos demais que não os apoiam. Isso permite ver razões que convergem com as da lei — analisa Celeste.
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